A poesia anda na Escola
O poeta do mês
FERNANDO PESSOA
Nascido em
Lisboa, em 13 de Junho de 1888, o ano de Os Maias de Eça e de A
Menina Júlia de Strindberg, e falecido, 47 anos depois, em 30 de Novembro
de 1935, a vida do Pessoa consistiu, por assim (pessoanamente) dizer, em não
haver vida: se por vida se entender um conjunto de acontecimentos mais ou menos
visíveis e mais ou menos ruidosos. Não casou, não teve filhos, não é mesmo
certo que tenha praticado, com alguma convicção, aquele acto de que pode
resultar o nascimento de filhos, não teve emprego certo, não teve, tirando
Mário de Sá-Carneiro, amigos que se pudessem considerar «íntimos», não concluiu
um curso superior, não viajou, depois do seu regresso a Lisboa que se seguiu à
estada (não por si determinada), de alguns anos, em Durban; a sua vida foi,
vastamente, uma sucessão ininterrupta de não aconteceres, só dramaticamente
entrecortados, uma vez pelo suicídio de Sá-Carneiro, acontecido à sua revelia.
Bebeu muito – alguma coisa havia de ter feito em excesso.
O pai, Joaquim de Seabra Pessoa, era um pequeno funcionário, mas inteligente,
lido e musicalmente dotado de cultura suficiente para se dedicar à crítica de
música; a mãe, Maria Madalena Pinheiro Nogueira, era de boa cepa açoriana e recebera
refinada educação.
O pai faleceu em 1893, tinha o futuro poeta 5 anos. Dois anos depois (1895) a
mãe casa, em segundas núpcias, com João Miguel Rosa, cônsul português em
Durban, a ele se indo juntar no ano seguinte. Entre 1896 e 1905, Fernando Pessoa
faz os seus estudos em escolas inglesas (High School), recebendo, em 1904, o
Prémio Rainha Vitória por um pequeno ensaio em inglês, como parte do exame de
admissão à Universidade do Cabo. Em Agosto de 1905, regressa sozinho a Lisboa
para frequentar o Curso Superior de Letras da Universidade de Lisboa. É sol de
pouca dura, vindo a abandonar o referido curso ao fim de poucos meses.
Transformara-se, assim, num duplo estrangeiro: um português atirado para uma
África do Sul de língua inglesa (Natal), dando lugar, anos depois, a um
adolescente de língua inglesa desaguando numa Lisboa de língua portuguesa (em
1905). Durban tinha-lhe sido território estrangeiro; Lisboa era agora, por sua
vez, território estrangeiro. A vida, o amor, a amizade, a língua, a realidade
do mundo, a literatura, iam ser, pela vida fora, territórios estrangeiros,
não-evidências a investigar. Nada lhe seria nunca dado numa bandeja, com o
fulgor das evidências que se nos impõem. Tudo tinha sido, era, ia ser, motivo
de assombro. Mais tarde, em apontamentos íntimos, não publicados, ele próprio
acentuará esta sua capacidade de assombro que era também uma incapacidade de se
deixar visitar por evidências que o são só dos outros: «O facto assombroso – o
único facto real –, o de as coisas existirem, o de alguma coisa existir, o de o
ser ser, é a alma do fôlego de todas as artes [...] todo o génio (qualquer
ideia de génio) é o renascimento do assombro. Na alma, aceitar é perder.» Na
perpétua exploração desse assombro estará a raiz da sua prodigiosa produção em
verso e em prosa, prosseguida nos intervalos (alongados) da sua mais ou menos
errática profissão de correspondente comercial em línguas estrangeiras (inglês,
sobretudo). Prodigiosa, em quantidade e variedade: «A variedade», dirá ele
algures, «é a única desculpa para a abundância. Ninguém deveria deixar escritos
vinte livros diferentes a não ser que conseguisse escrever como vinte homens
diferentes. As obras de Victor Hugo enchem cinquenta volumes avantajados, no
entanto, cada um dos volumes, quase cada uma das páginas, contém o Victor Hugo
inteiro. As outras páginas somam-se como páginas, mas não como génio. Não havia
nele produtividade mas simplesmente prolixidade. [...] Se um homem conseguir
escrever como vinte homens diferentes, ele será vinte homens diferentes [...] e
os seus vinte livros estarão em ordem.» Eis, em poucas palavras, a
«justificação» da sua famosa «invenção» dos heterónimos, invenção que não foi,
como se sabe, sua, embora ele a tenha levado a um tal paroxismo de intensidade
e explicitação que, de algum modo, a fez nova e, por aí, a fez sua. A ideia do
heterónimo encontra-se já implícita na «imitação» ou fingere, palavra
latina de grego e aristoteliano sabor, e, numa das suas cartas, Byron não anda
muito longe da teoria da multiplicação do eu, quando diz: «[...] se me conheço,
deveria dizer que não tenho de todo personalidade... Sou tão mutável, sendo
tudo à vez e nada por muito tempo – sou uma tal mélange de bem e de mal,
que seria difícil descrever-me». Por outro lado, Stendhal, Kirkegaard, Eça de
Queirós (com a criação de Fradique Mendes) e, já mais próximo de nós, Valery
Larbaud e Antonio Machado recorreram ao uso do heterónimo, embora não tenham
inventado o vocábulo. Fernando Pessoa, repete-se, até pela multiplicação quase
cancerosa que deu à personalidade, criando cerca de trinta diferentes personae,
de vária importância, deu estatuto adulto à invenção e iluminou-a com uma
intensidade capaz de nos fazer ter dela uma espécie de consciência nova, o que
levaria John Pilling a afirmar ser o autor de Mensagem «o mais múltiplo
de todos os poetas modernos». Por outro lado, teve o cuidado meticuloso e,
pelos vistos, frutuoso de mitificar, em devido tempo, a sua própria invenção,
na famosa e inspirada carta que escreveu a Adolfo Casais Monteiro (13-1-1935),
na qual confere ao dia auroral de 8 de Março de 1914 o estatuto de data-viragem
nos anais da história literária pessoana e portuguesa, tout court o dia
do aparecimento tumultuoso e imparável da série de poemas a que deu o título de
O Guardador de Rebanhos, cujo autor, Alberto Caeiro, pagão de espécie
complicada e espantadamente simples, se revela, desde logo, seu mestre...
Mestre que o será também, confessadamente, de Ricardo Reis e de Álvaro de
Campos. Cunhando medalha para a posteridade, Álvaro de Campos proclamará com o
exagero militante que competentemente cultivava: «O meu mestre Caeiro não era
um pagão: era o paganismo.» E o próprio Pessoa-ele-mesmo (se é que há um
Pessoa-ele-mesmo) fará o panegírico exaltado do seu mestre, em termos igualmente
extremistas: «Pascoaes virado do avesso, sem o tirar do lugar onde está, dá
isto – Alberto Caeiro. Como Whitman, Caeiro deixa-nos perplexos. Somos
arrancados à nossa atitude crítica por um fenómeno tão extraordinário. Jamais
vimos algo de parecido com ele. Mesmo depois de Whitman, Caeiro é estranho, e
terrivelmente, pavorosamente, novo. Mesmo na nossa época, em que julgamos que
nada há que nos possa espantar ou que possa gritar-nos uma novidade, Caeiro
realmente espanta e realmente respira novidade absoluta.» Poeta que olha o
mundo com o espanto de se não espantar, satisfeito com o mistério de não haver
mistério («O único mistério é haver quem pense no mistério»), gozada e
militantemente fora do íntimo (que não há) das coisas («O único sentido íntimo
das coisas/É elas não terem sentido íntimo nenhum»), não é de admirar que esta
terapêutica simples e operacionalmente consoladora tenha desvairado o
engenheiro histérico e depressivo (Álvaro de Campos), levando-o a mais esta
exaltação do seu mestre: «Ninguém é inconsolável ao pé da memória de Caeiro, ou
dos seus versos; e a própria ideia do nada – a mais pavorosa de todas se se
pensa com a sensibilidade – tem, na obra e na recordação do meu mestre querido,
qualquer coisa de luminoso e de alto, como o sol sobre as neves dos píncaros
inatingíveis.»
Inventado Caeiro, Pessoa «trat(ou) de lhe descobrir – intuitiva e
subconscientemente – uns discípulos». Assim nasceram Ricardo Reis e Álvaro de
Campos. Reis é, como Caeiro, pagão, mas tem, ao contrário do outro, rigor e
densidade: «A sua inspiração é estreita e densa», observará Campos, «o seu
pensamento compactamente sóbrio, a sua emoção real se bem que demasiadamente
virada para o ponto cardeal chamado Ricardo Reis.» A respeito deste não muito
popular heterónimo, observou o seu tradutor inglês, Jonathan Griffin, que Reis
«é o mais que Pessoa conseguiu aproximar-se de Caeiro». «Discípulo de Caeiro,
Reis trabalha o paganismo no sentido de uma doutrina ética, em parte
epicurista, em parte estóica, no entanto, a um tempo consciente e distante de
um universo condicionado pelo cristianismo; uma doutrina que permita a pessoas
do mundo moderno viverem, sofrendo o menos possível.» Campos é o engenheiro
graduado em Glasgow, futurista, amante, panegirista das máquinas, dos portos,
do mundo moderno e aerodinâmico, oscilando entre a depressão e a histeria,
desprezando os homens porque não brilham nem ostentam a simplicidade eficiente
das máquinas: «Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!/Ser
completo como uma máquina!/Poder ir na vida triunfante como um automóvel
último-modelo!» Jogando o jogo em que se fez mestre consumado – o faire
semblant –, Pessoa traçaria, ele-próprio, o perfil magistralmente recortado
de Álvaro de Campos: «Álvaro de Campos define-se excelentemente como um Walt
Whitman com um poeta grego dentro de si. Há nele toda a pujança da sensação
intelectual, emocional e física que caracterizava Whitman; mas nele verifica-se
o traço precisamente oposto – um poder de construção e desenvolvimento ordenado
de um poema que nenhum poeta depois de Milton jamais alcançou.»
O fenómeno Pessoa não nascera, é claro, do nada. A sugestão, mais, a
proclamação descarada, pelo menos em relação a Caeiro, de que «jamais vimos
algo de parecido com ele», de tal modo ele é «pavorosamente novo», pode
levar-nos à ideia de que Fernando Pessoa insinuava uma ruptura total com o
passado. Não é verdade. Em mais de um escrito, o autor de Mensagem faz
questão de dizer, às vezes com ênfase quase polémica, que nunca se avança, a
não ser com um pé atrás e outro à frente. Almada pretenderá, com estardalhaço
exibicionista, fazer tábua rasa de um passado que o incomoda. Pessoa, pelo
contrário, anota, cuidadosamente, possíveis e até prováveis influências:
Baudelaire, Cesário Verde, Edgar Poe, Antero, Gomes Leal, Guerra Junqueiro,
Garrett (que teria desencadeado nele o desejo de escrever poesia em português),
Milton, Keats, Shelley, Byron, Tennyson, Wordsworth, Carlyle, Camilo Pessanha,
simbolistas franceses, António Nobre e até José Duro e António Correia de
Oliveira. Curiosamonte, os românticos, para ele, contam (o modernismo inglês
rejeitará, em bloco, a herança romântica...). Almada quer provocar, épater,
no próprio momento em que Pessoa confidencia ao seu amigo Côrtes-Rodrigues:
«Passou de mim a ambição grosseira de brilhar, e essa outra, grosseiríssima, e
de um plebeismo artístico insuportável, de querer épater.» Por isso é
curioso observar como se lança, na aventura modernista, este grupo hoterogéneo:
Almada, Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor, António Ferro, de um lado, isto é,
pessoas que «como almas, propriamente, não contam», do outro, Fernando
Pessoa, brincando a contragosto, quase nauseado e sempre «gravemente atento à
importância misteriosa de existir». Seja como for, junta-se aos amigos
literários e funda, em 1915, a revista Orpheu, que vai, por um breve
momento, agitar a poeira de uma cultura que adormece. Nisto tudo, como
observará, com argúcia, Octavio Paz, «as suas aparições são isoladas e
espasmódicas, golpes de mão para aterrorizar os quatro gatos da literatura
oficial». O importante não será tanto este espasmódico aparecer em público,
como o rio subterrâneo da criação solitária e obstinada: «Como todos os grandes
preguiçosos», observa ainda Paz, «passa a vida a fazer catálogos de obras que
nunca escreverá; e como acontece também aos abúlicos, quando são apaixonados e
imaginativos, para não rebentar, para não enlouquecer, quase às escondidas, à
margem dos seus grandes projectos, escreve todos os dias um poema, um artigo,
uma reflexão. Dispersão e tensão.» Preguiçoso, talvez, mas de uma espécie
peculiar; abúlico, sem dúvida, mas obstinado também e administrador meticuloso
da própria glória presente e a haver, como magistralmente demonstrou David
Mourão-Ferreira ao fazer o mapa revelador das estratégias de publicação
seguidas pelo autor de Mensagem. Na Athena, na Contemporânea,
enfim, na Presença (que o acolhe e lhe dá tratamento de Mestre),
Fernando Pessoa vai colocando o melhor da sua mercadoria poética e outra, assim
assegurando a letra de forma ao mais excelso do que importa salvar. Em vida, à
parte os poemas ingleses, dá forma de livro apenas à Mensagem, com que
concorre a um prémio do Secretariado da Propaganda Nacional, com êxito relativo
(um 2°. prémio). Conta, nos dois anos que, julga, lhe restam de vida, deixar
organizados os manuscritos, para publicação. Enganara-se, contudo, na
elaboração do seu próprio horóscopo (versão de Raul Leal), e a ampulheta
chegara ao fim: os manuscritos iam ficar no baú, preservados mas não preparados
para publicação imediata, quando o seu autor baixou, subitamente, ao Hospital
de S. Luís dos Franceses, no dia 29 de Novembro de 1935, aí vindo a falecer no
dia seguinte.
A sua obra, cuja publicação sistemática foi iniciada em 1942 pela Ática, sob a
direcção de João Gaspar Simões, encontra-se ainda hoje, apesar da volumosa
parte já dada à luz, não totalmente revelada. Por outro lado, sob a direcção de
Ivo Castro, procede-se finalmente à realização cuidadosa de uma edição crítica
– a melhor homenagem, no fim de contas, à grandeza do poeta.
in Dicionário Cronológico de Autores Portugueses, Vol. III, Lisboa, 1994