22/01/2013

POETA DO MÊS: JOSÉ LUÍS PEIXOTO

A poesia anda na Escola
José Luís Peixoto nasceu a 4 de Setembro de 1974 em Galveias, Ponte de Sor. É licenciado em Línguas e Literaturas Modernas (Inglês e Alemão) pela Universidade Nova de Lisboa. A sua obra ficcional e poética figura em dezenas de antologias traduzidas num vasto número de idiomas e estudada em diversas universidades nacionais e estrangeiras. Em 2001, recebeu o Prémio Literário José Saramago com o romance Nenhum Olhar, que foi incluído na lista do Financial Times dos melhores livros publicados em Inglaterra no ano de 2007, tendo também sido incluído no programa Discover Great New Writers das livrarias norte-americanas Barnes & Noble. O seu romance Cemitério de Pianos recebeu o Prémio Cálamo Otra Mirada, atribuído ao melhor romance estrangeiro publicado em Espanha em 2007. Em 2008, recebeu o Prémio de Poesia Daniel Faria com o livro Gaveta de Papéis. Os seus romances estão publicados na Finlândia, Holanda, no Brasil, nos Estados Unidos, entre outros países, estando traduzidos num total de vinte idiomas.


Obras Publicadas
Ficção
Poesia
  • 2001 - A Criança em Ruínas
  • 2002 - A Casa, a Escuridão.
  • 2008 - Gaveta de papéis
Literatura de Viagem
  • 2012 - Dentro do Segredo- Uma viagem na Coreia do Norte
Obras de teatro
Textos para músicas
Escreveu textos para os grupos A Naifa, Quinta do Bill, Mísia, Joana Amendoeira, Jorge Palma e para o projeto Balla, de Armando Teixeira.
Palavras para a Minha Mãe
mãe, tenho pena. esperei sempre que entendesses
as palavras que nunca disse e os gestos que nunca fiz.
sei hoje que apenas esperei, mãe, e esperar não é suficiente.

pelas palavras que nunca disse, pelos gestos que me pediste
tanto e eu nunca fui capaz de fazer, quero pedir-te
desculpa, mãe, e sei que pedir desculpa não é suficiente.

às vezes, quero dizer-te tantas coisas que não consigo,
a fotografia em que estou ao teu colo é a fotografia
mais bonita que tenho, gosto de quando estás feliz.

lê isto: mãe, amo-te.

eu sei e tu sabes que poderei sempre fingir que não
escrevi estas palavras, sim, mãe, hei de fingir que
não escrevi estas palavras, e tu hás de fingir que não
as leste, somos assim, mãe, mas eu sei e tu sabes.

José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"



A Mulher Mais Bonita do Mundo
estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.


José Luís Peixoto, in "A Casa, a Escuridão"




Amor
o teu rosto à minha espera, o teu rosto
a sorrir para os meus olhos, existe um
trovão de céu sobre a montanha.

as tuas mãos são finas e claras, vês-me
sorrir, brisas incendeiam o mundo,
respiro a luz sobre as folhas da olaia.

entro nos corredores de outubro para
encontrar um abraço nos teus olhos,
este dia será sempre hoje na memória.

hoje compreendo os rios. a idade das
rochas diz-me palavras profundas,
hoje tenho o teu rosto dentro de mim.

José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"







Explicação da Eternidade
devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.
foste eterna até ao fim.


José Luís Peixoto, in "A Casa, A Escuridão"



Desmantelamento de um rio
Arranco os autocolantes da parede do quarto do nosso filho,
como se a faca elétrica da cozinha me atravessasse o braço.
Sou eu que apago os seus desenhos na parede. Não são riscos,
são desenhos. Há lápis de cera espalhados e partidos pelo chão.
Depois de nós, esta morada terá outros nomes e chegarão cartas
pacientes à caixa do correio. Agora, são impossíveis de imaginar,
como o nosso ontem será impossível de imaginar. Foi aos poucos
que ficou apenas o sofá e as recusas e os armários esventrados.
Foi muito demoradamente que chegaram as noites em que durmo
no sofá, sob um cobertor oferecido pela minha mãe ou pela tua.
Por fim, tenho tempo para habituar os olhos às sombras e avaliar
a devastação, acordar com o frio da madrugada, o esquecimento,
e assistir àquela hora azul em que já não é de noite, mas em que
ainda falta tanto para ser de dia. Despejo no fundo de um saco
tudo o que está naquela gaveta que nunca ninguém arrumou.
À minha volta, há caixotes que servem para guardar os livros,
já estão divididos. Escolho o lugar para pousar os pés. Fizemos
coisas nesta sala vazia, tivemos pensamentos, aprendemos
alfabetos. Resta-me agora o que sempre tive e, como se caísse
desamparado na banheira, prossigo e continuo o meu trabalho,
como se batesse com a cabeça na esquina de uma gaveta,
prossigo e continuo o meu trabalho.

José Luís Peixoto, in Gaveta de Papéis




Poema do livro Gaveta de Papéis (2008)
Tenho mil irmãs para amar sem palavras.
Tenho aquela irmã que caminha encostada
às paredes e sem voz, tenho aquela irmã de
esperança, tenho aquela irmã que desfaz o
rosto quando chora. Tenho irmãs cobertas
pelo mármore de estátuas, refletidas pela
água dos lagos. Tenho irmãs espalhadas por
jardins. Tenho mil irmãs que nasceram
antes de mim para que, quando eu nascesse,
tivesse uma cama de veludo. Agradeço com
amor a cada uma das minhas irmãs. São mil
e cada uma tem um rosto a envelhecer. As
minhas mil irmãs são mil mães que tenho.
Os olhos das minhas irmãs seguem-me com
bondade e, quando não me compreendem,
é porque eu próprio não me compreendo.
Tenho mil irmãs a esperar-me sempre, com
silêncio para ouvir-me e para proteger-me
no inverno. Tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola e tenho aquela irmã que é uma
menina que sai de casa cedo para chegar cedo
à escola. Tenho irmãs como música, como
música. Tenho mil irmãs feitas de branco.
Eu sou o irmão de todas elas. Sou o guardião
permanente e incansável do seu sossego.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.
Eu tenho de ser feliz pelas minhas irmãs.


 José Luís Peixoto



Um poema de José Luís Peixoto
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva. cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho. mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.

In  A Criança em Ruínas.



















Passagem de segundo
Existem vinte e quatro fusos horários. Por isso, durante um dia inteiro, hora a hora, há pessoas a celebrarem o fim/início de ano velho/novo. O planeta gira à sua velocidade pesada, como um daqueles cilindros de carne, um espeto de shoarma, e, durante um dia inteiro, hora a hora, é varrido por multidões a contarem em coro, a brindarem, a entusiasmarem-se ou a comoverem-se. Começa numa ilha qualquer do Pacífico. Ainda não estamos vestidos para a festa e já vimos no telejornal o fogo de artifício em Sidney. Depois, hora a hora, vai-se aproximando. Quando falta pouco, alguém diz: já é ano novo em Espanha.
Contar para trás exige um nível apurado de atenção. Talvez possa ser comparado com o esforço que um destro faz ao assinar o nome com a mão esquerda. O princípio é semelhante. Contraria uma espécie de instinto, algo que se aprendeu há muito tempo.
Em casa, as crianças entre os quatro e os dez anos ficam acordadas excecionalmente até à meia-noite. Assistem admiradas às celebrações dos avós. Há festa na televisão ligada. Aquilo que acontece na sala parece uma continuação tosca daquilo que acontece na televisão. Olhamos para lá e aprendemos como se faz.
Este ano ainda não espirrei, este ano ainda não fui à casa de banho, este ano ainda não bebi um copo de água; não te via desde o ano passado, não almoçava desde o ano passado, não pensava no ministro das finanças desde o ano passado, felizmente.
Quando a vida retrocede, quando se passa a viver pior, faz sentido afirmar que se avançou um ano? Pelas contas dos calendários, chegámos a 2013. Mas, olhando para o tempo, quando foi a última vez que nos sentimos assim? Há quantos anos tínhamos alcançado aquilo que perdemos? Há vinte anos atrás, seríamos capazes de imaginar este tempo com uma sofisticação diferente: robots a fazerem as tarefas domésticas, teletransporte. Mas agora estamos aqui.
Há a internet e os telemóveis mas, sob a perspetiva dos direitos que deixámos de ter, estamos em que ano? Talvez o tempo não avance como a ciência e os relógios garantem. Talvez o tempo ondule. Se assim for, é certo que ondulamos com ele. É até possível que se agite por nossa causa. Se assim for, não é certo que estejamos em 2013. Aqueles que têm de emigrar para onde ficam sozinhos reconhecem a sua realidade em histórias com mais de quarenta anos; aqueles que perdem a casa recuam dez ou vinte anos; aqueles procuram e não encontram sentem que 2013 não é muito diferente de 2012. 
Depois de rebentarem as rolhas das garrafas de espumante aqui, continuam a rebentar, hora a hora, em direção a oeste. Há milhares de pessoas eufóricas em Times Square, as autoridades de certos países advertem para os perigos dos tiros para o ar, centenas de pessoas resolvem tomar banho nas águas geladas de todos os mares.
Nestas últimas semanas, ao conduzir por uma estrada onde passo habitualmente, tenho reparado num cartaz que anuncia o fim de ano em Salvador da Baía por mil e quinhentos euros. Com alguma melancolia, imagino essas pessoas a entrarem no avião. Como serão os seus rostos? Continuo o meu caminho, ultrapasso e sou ultrapassado, presto atenção a outros cartazes que se anunciam a si próprios: têm um número de telefone e a frase: "saiba como anunciar aqui". Ultimamente, há muitos cartazes assim, vazios, ninguém quer anunciar nada neles.
Enquanto isso, algures, existem as pessoas reais que se preparam para atravessar o oceano, têm o passaporte em dia. Levam aquilo que imaginam e regressarão com aquilo que encontrarem. Talvez acreditem que o tempo que aí vem será melhor se passarem essa data lá longe, naquilo que imaginam. Quase de certeza que imaginam algo melhor do que estar aqui. De outra maneira, não iriam até lá. Não se davam a esses gastos e a esse trabalho.
Enquanto isso, há pessoas a dormir durante a passagem de ano.
Termina um ano, termina um mês, termina uma semana, termina um dia, termina uma hora, termina um minuto, termina um segundo. Este segundo, e este, e este, e este.
Noutra dimensão, alheio a estes detalhes, há o tempo. Nunca termina, nunca começa, continua sempre.


José Luís Peixoto, in revista Visão (janeiro 2013)

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